O homem-massa

No final do Medievo e, em especial no Renascimento, inicia-se uma crise na sociedade. Ela é marcada pelas mudanças que se delinearam e pela quebra de paradigmas, entre eles, do poder da Igreja sobre praticamente todos os segmentos da vida das pessoas. Embora essa ruptura possa ser percebida de formas diferentes por historiadores e filósofos, ela inaugura, ou para alguns, se estende até as próximas eras.
Já com a sequência de Revoluções – Industrial e Francesa – esse abismo se evidenciou com maior intensidade. Transformações sociais, políticas, econômicas, religiosas e porquê não educacionais, exerceram um impacto gigante para uma nova formação de ser humano que se buscava para o momento. Muito do que servia como uma bússola entre virtudes e valores, deixaram de fazer sentido.
Esse esvaziamento das qualidades trouxe um buraco existencial enorme. Os laços comunitários que uniam as pessoas foram deixados de lado para a vida nas cidades, o trabalho, antes externo, ocupou-se de fechar os trabalhadores em locais distintos e fazê-los não se conhecer; alimentando impessoalidade, individualismo e até indiferença às mazelas que presenciavam. Estava posta a mesa da crise moral no globo.
Se antes havia a égide da moral religiosa que alicerçava as relações humanas, isso perdeu seu espaço a partir desse momento. E embora ela atendesse aos seus próprios caprichos, tinha seu valor social. Emerge um desencantamento com o mundo, um pessimismo que assombrava o que realmente o futuro guardava para o planeta.
A modernidade trouxe consigo valores emancipatórios, fundamentados na racionalidade de cada indivíduo e na relativização de algumas virtudes. Tudo precisava se encaixar no novo estilo de vida do antes camponês, agora trabalhador; antes nobre, agora burguês. Muitos nomes importantes vão se debruçar sobre os diferentes vieses desse tempo e do que seguiu, como Marx e Nietzsche, pra não falar em tantos outros.
O novo modelo de vida citadino, apressado, mal remunerado, ocupado, cansado, forja um novo ser social: o homem-massa. Tal expressão, cunhada pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), é a que melhor representa tal espécime, em circulação até os dias de hoje nos quatro cantos do planeta:
Para Ortega, massa é um tipo de ser humano e não uma classe social. De maneira que muitos pobres podem ser homens autônomos e autênticos e muitos ricos podem ser heterônomos e massa. Os homens-massa são apenas os que vivem sem esforço, abandonam-se e deixam-se ir, em pura inércia. Falta-lhes reflexão, predominam em seu espírito o natural e o espontâneo, o irracional e uma vitalidade descendente, recheada de ressentimento – falta-lhes um projeto vital (ASSUMPÇÃO, 2012, p. 128).
Apesar da ludicidade da expressão – homem-massa – faz-se necessário citar que seu dono, utilizou diversos conceitos para subsidiar sua obra e colocar essa criatura como seu modelo, que não cabem nesta discussão. O que vale para nós é como isso se relaciona com a Filosofia, a ética e a moral.
Falando dessa forma, parece-nos que antes desse tempo dos relógios das fábricas, as pessoas tinham outra postura perante o coletivo. Mas não tinham, os ditames da vida eram outros e esse fenômeno ficava escondido nos recôncavos da vida de cada um, mediada por laços de cooperação e pelo poder exercido pela religião na maior parte do tempo.
E Ortega é correto ao dizer que o homem-massa, não é necessariamente aquele que de origem pobre, podendo ser rico. A régua dele era a falta de postura perante a própria vida, o desejo de viver e a forma como isso se dava. Aqueles que eram donos de si e de suas atitudes não se encaixavam nesse molde, os que deixavam a vida lhes levar eram os membros por excelência desse grupo.
Trazendo a discussão para o campo da moral e da ética, podemos fazer a seguinte comparação: o homem-massa era o adepto da moral, seja ela qual for que adotasse; enquanto os autônomos e autênticos, como nas palavras de Assumpção, eram os que viviam em busca da ética. Os conformados usavam da sombra da moral a total despreocupação com seus destinos e com a vida em coletivo, desde que seus desejos fossem atendidos.
Já os éticos, seriam os que estavam sob a bandeira da reflexão, da racionalidade, da vitalidade pela mudança, do não conformismo, da vida que merecia ser vivida pelo seu propósito que extrapolava os projetos individuais e alcançava a sociedade. Seriam os homens-espinho (minha expressão), porque permaneciam com seus valores universais acima de tudo, mesmo que isso afastasse aqueles que desejassem manuseá-los.
Voltaire já tinha observado tal fenômeno e registrado numa das suas máximas que a preocupação do povo era trabalhar seis dias para no sétimo ir ao prostíbulo, sem estar interessado em nada que pudesse, de fato, mudar suas vidas. Típicos homens-massa. E esse novo modelo de homem para a sociedade industrializada alimentou a grosso modo, convenientemente a perda de valores essenciais para a humanidade.
[...] Para Ortega com a nova técnica, o homem passa a pensar que viver é não ter limite algum, é abandonar-se tranquilamente a si mesmo e que não há necessidade de fazer a si próprio. Para o homem massificado do século XX, praticamente nada é impossível, nada é perigoso e, o grande problema: em princípio, ninguém é superior a ninguém, não há nortes a serem seguidos, nenhuma espinha dorsal que possamos identificar na humanidade. Não há valores. Tudo cai, se horizontaliza, se relativiza. (ASSUMPÇÃO, 2012, p. 137).
É esse indivíduo que não tem compromisso nem com ele mesmo que habita as massas. Estamos rodeados por eles. Muitos estão em posição de decidir os rumos das nossas vidas. Transpiram vulgaridade, grosseria, ignorância e, se orgulham de cada uma delas. Fazem por si, o mínimo de esforço possível para se perpetuarem na deriva da sociedade, sem importar-se com os demais. A moral entrelaça-se com o instinto e essa sua nova natureza não reconhece nada de ético.
Alguns sabem um pouco que podem se construir melhores, outros limitam-se propositalmente a se manterem como estão; movidos pela falta de compromisso individual e coletivo. Esvaziam-se dos poucos elementos que ainda lhes tornam humanos e já não respondem mais por si por uma surdez moral seletiva, que não ouve o chamado da ética.
ASSUMPÇÃO, Jéferson. Homem-massa: a filosofia de Ortega y Gasset e sua crítica à cultura massificada. Porto Alegre: Bestiário, 2012,
Talita Seniuk
Professora
linkedin.com/in/talita-seniuk-222823179
@talita_seniuk