O machado de algodão

Mais um Dia dos Professores que chega. Inúmeras homenagens eclodem das instituições, dos estudantes, das famílias e claro, da sociedade. Todos parabenizam os docentes que conhecem e por extensão, aqueles que não. Chovem discursos da importância da docência, sua inegável função social para o planeta, os percalços da profissão e por aí vai... a lista é extensa.
Acho isso um fenômeno bem interessante. A maioria das pessoas só lembra de algo quando uma data o faz recordar. Os demais 364 dias seguem na completa indiferença à temática ora comemorada. Os professores, seguem todo o resto do ano letivo e também o civil, na completa marginalidade.
Num determinado momento da pandemia em que seguíamos sem aulas presenciais, assistimos diversos discursos nas mídias, tanto de pais e responsáveis quanto dos próprios meios de comunicação de que quando esse período passasse, certamente os docentes seriam muito valorizados, pois percebeu-se a dificuldade que era ensinar algo. E olha, que muitos destes que proferiram este discurso, tinham em suas casas apenas seus filhos para tal empreita (e os professores, três ou quatro dúzias por sala).
Não obstante, houve também aqueles grupos que incomodados com a presença dos próprios pupilos em seus respectivos lares, vomitaram suas manifestações que o corpo docente da escola dos seus eram um bando de desocupados que usaram o vírus para ficar em casa, descansando. Ledo engano, foram os dias e os meses em que mais se trabalhou, pois não havia limites temporais para estudantes mandarem mensagens, fora do horário, em fins de semana e feriados.
O que incomodou muita gente nessa época foi ficar com seus filhos sob sua responsabilidade, vinte e quatro horas por dia. O problema não era a preocupação com aprendizado, mas em ter que aguentá-los em casa, ininterruptamente. Claro, que não se pode estender essa afirmação para todos aqueles que possuem infantes em idade escolar. Mas, para uma grande maioria, esse discurso se encaixou.
Antes que alguém encontre uma justificativa, façamos ela aqui: logicamente que muitos jovens encontram segurança apenas na escola. Nos seus lares, suas famílias ao invés de protegê-los, expõe-lhes ao perigo – fome, violência, exploração, abuso sexual – entre outras situações. Mas o texto aqui vale para aquela família padrão, mediana; que infelizmente não pensa no aprendizado dos seus, mas no tempo livre enquanto eles estão fora de sua supervisão.
E quando voltamos para as aulas presenciais... a listagem de problemas que vieram junto com isso, excedeu as expectativas das escolas e dos profissionais da educação. Nunca havíamos passado por um momento como esse e é natural que ainda estejamos nos adaptando a ele. Os alunos vieram com uma maior resistência a tudo que é proposto.
Se antes de tudo isso já estava bastante desafiador o cenário educacional brasileiro, agora está praticamente instransponível. Os conteúdos curriculares que antes já eram recebidos com indiferença, atualmente, são vistos como uma tortura. E não adianta, na maioria das vezes, o uso de novas ferramentas, sempre é chato para os estudantes.
Se um filme é a proposta, ouve-se de que eles têm serviços de streaming para ver; se há indicação de uma música, eles possuem aplicativos de música para tanto; se precisa ler uma página, a resposta é de que não tem como, pois, trata-se de um “textão”; exercícios são cansativos porque precisa pensar; atividades lúdicas não são bem-vindas porque precisa interagir com aquele colega de classe tão odiado; tarefas artísticas dão muito trabalho, e por aí vai.
O que se percebe, é que nada interessa. Os professores podem usar as mais diversas estratégias pedagógicas, que antes mesmo da proposta, já há uma resistência em fazê-la. Enquanto cada vez mais os docentes se especializam em ensinar, menos os discentes parecem estar dispostos a aprender.
Muito se fala em educação, até por aqueles que só pisaram no chão de uma escola durante seu estágio supervisionado, na época da faculdade. O debate permeia sempre a necessidade da disposição docente em sempre se atualizar na práxis. E isso, acontece na prática, pela grande maioria. Difícil encontrar um professor que não esteja buscando algo novo para suas aulas. Nossa parte, estamos fazendo (e claro, falamos da grande maioria).
Mas e quando a responsabilidade do aprendizado dos alunos também recairá sobre as famílias? Fala-se na culpa dos professores e das escolas nesse processo, mas ambos são apenas uma parte do desenvolvimento. Vemos por aí, principalmente em instituições com problemas crônicos de violência dentro de suas dependências receberem a visita de promotores, juízes, conselhos, e demais esferas, cobrando das escolas e dos professores uma postura para a mudança desse paradigma. Mas e a família, em que momento será responsabilizada?
Escolas e docentes sempre estão a favor do bom convívio, de um ambiente favorável ao aprendizado, com sociabilidades saudáveis. Quem precisa aceitar esse compromisso são os discentes e seus responsáveis, afinal, todo aluno, apenas reproduz aquilo que recebe em casa. São espelhos daqueles que convivem com eles. Isso só indica onde está o que precisa ser mudado. Escolas sempre estarão de braços abertos para o respeito e a reprodução do bem.
E falando de violência, quem lembra da Professora Heley de Abreu Silva Batista, que salvou diversos alunos na Creche Gente Inocente em 2017? A tragédia – 14 mortes e mais de 50 feridos – só não foi maior, porque ela lutou contra o agressor. Teve 90% do corpo queimado e não resistiu. Nossos sentimentos à família. Essa heroína não ganha uma homenagem, um documentário (ah! Documentários são para os criminosos) ... Mas ela sempre será lembrada pelos seus colegas de profissão.
E alguém ouviu falar do Professor Juliano Montovani, que em 2019 conseguiu imobilizar um ex-aluno da escola onde lecionava, que invadiu o espaço com uma machadinha e já havia ferido 7 pessoas? Imagina-se que não. Nossa elevada estima por esse profissional que pôs sua vida em risco para evitar uma tragédia ainda maior.
E alguém ainda lembra do assassinato, este ano de 2022, da Professora Cleide Aparecida dos Santos? Foi morta em agosto, por um ex-aluno. Tudo aconteceu no Estado de Goiás, na cidade de Inhumas. A família ainda segue em luto, enquanto o agressor, provavelmente está solto, incólume.
Outro ponto que merece destaque é o de que na escola, o ideal seria o processo de escolarização dos seus tutelados. Aprender o bom convívio coletivo sim, além das matérias; mas o que tem se percebido é de que antes de tudo é preciso ensinar a educação, aquela que antes vinha de casa: respeito, bondade, paciência, hierarquia, disciplina. Perde-se tanto tempo com estes problemas que sobra pouco ou quase nada, muitas vezes, para ensinar os conteúdos curriculares.
Esse sintoma de culpabilidade de um determinado grupo, nos oferece um paradigma: os estudantes são sujeitos de direitos, enquanto os professores são sujeitos de deveres. Enquanto alunos estão literalmente explodindo nas salas com colegas e profissionais da educação, aos professores só cabe implodir. Implodir, isso mesmo, pois qualquer esboço de perda do controle de um docente é motivo para críticas.
Com isso, essa categoria está adoecendo como nunca. Sempre houve casos de docentes que chegaram ao limite e precisaram se afastar – temporário ou permanentemente – do ambiente escolar. Acontece que agora, isso está cada vez mais precoce e com sequelas vitalícias. Não são poucos os comentários de colegas de profissão que têm medo da reação dos alunos e dos seus familiares, pelo simples fato de que o professor estava no exercício de profissão e dentro da legalidade.
Então, pode surgir outro comentário que adiantamos uma resposta: “se está tão ruim dar aulas, porque eles não mudam de profissão”; e para isso há casos de muitos que abandonaram carreiras estáveis por causa desses problemas e há tantos outros que estão aprendendo novas habilidades, para quando possível, demitirem-se. E isso se reflete em projeções, como recentemente saiu num veículo de imprensa, que em breve haverá um apagão de professores, por inúmeros motivos, o que comprova nossa “reclamação”.
Se o professor é tão fundamental para a sociedade, por que ela insiste em menosprezá-lo? E não se trata só de retribuição pecuniária. Valorizar vai muito além disso, como por exemplo, que tal trocar estas falsas homenagens que proliferam no dia 15 de outubro, pelo respeito cotidiano durante todos os dias do ano? Que tal passar a se preocupar com o aprendizado dos filhos e começar a ouvir o que os professores deles têm a dizer (afinal, é impossível que um grupo de adultos que falam mais ou menos a mesma coisa de um discente estejam todos errados e apenas ele seja o verdadeiro portador da verdade, injustiçado por todos)?
Todos sabem o quanto uma educação de qualidade auxilia na mobilidade social de uma pessoa. É inegável que com ela, as pessoas se emancipem. Mas quanto tempo ainda será perdido, culpando professores e escolas (que fazem o melhor que podem com aquilo que tem, em especial nas escolas públicas) de que precisam aprender a ensinar, se uma parcela enorme da sua clientela não está disposta a aprender.
Para o desenvolvimento intelectual e social de um aluno há inúmeros elementos que precisam estar em consonância, e estes englobam aqueles dentro e fora dos muros escolares. Todos sabem o que precisa para um bom aprendizado, professores e escolas sempre estiveram dispostos a realizar seu trabalho, o faz de conta tem vindo de outro local que não se responsabiliza, afinal não há como cortar lenha com um machado (professores e escolas) de algodão (famílias e responsáveis) ...
Talita Seniuk
Professora
linkedin.com/in/talita-seniuk-222823179
@talita_seniuk